Forum Angolano de Reflexão e de Acção.
25 Octobre 2013
O grande reino do Kongo estendia-se por ambas as margens do rio Zaire, cobrindo a maior parte da região norte de Angola e o sudoeste da República Democrática do Congo até Bandundu e Kananga. Era um dos maiores e mais poderosos estados da costa ocidental de África, mais de trezentos anos antes desta nossa história.
Os historiadores ainda hoje continuam intrigados com o facto de, inversamente ao que aconteceu noutras regiões do continente, os primeiros contactos com os europeus recém chegados – no caso os portugueses, como em tudo o que era África desconhecida – ao invés de resultarem na destruição do reino do Kongo, foram pacíficos e vantajosos para ambos os lados. Os contactos iniciados em 1482, deram lugar a um longo período de amizade e de progresso.
(Adaptado do desenho de José de Moura – 1944 - in Outras Terras Outras Gentes, 1º Volume - Henrique Galvão)
Quando em 1491 os portugueses chegaram à capital, M'banza Kongo ou M'Banji-a-Ekongo, o manikongo (rei) da época, Muene-Muzinga-a-Cuum, pediu para ser baptizado e recebeu o nome do rei de Portugal, D. João. Mais tarde, por volta de 1507, o seu segundo filho, M'benza-a- -Nzinga, quando se tornou manikongo Afonso, tentou transformar completamente o Kongo num reino cristão, pelo que construiu igrejas, mudou o nome da capital de para S. Salvador e procurou, a todo o custo, “europeizar” o seu povo. Tinha o desejo de desenvolver de modo pacífico a sua terra, à custa de um enxerto da cultura do pequeno reino ibérico e correspondendo--se amiúde com o monarca D. Manuel I de Portugal, a quem tratava por meu irmão . Em contrapartida, Manuel alude a Afonso I do Kongo, em precisas instruções dadas a um seu representante em terras de África, como “ um rei a quem temos mui grande amor e que estimamos por sua virtude, como ele merece ”.
A história da deterioração das relações entre o rei do Kongo e os portugueses, considerada uma tragédia, é um conjunto de erros e de posições estremadas de parte a parte. Por um lado o manikongo confundiu o cristianismo com o poder, tomando decisões politicamente menos acertadas, por outro, a ambição da alcateia de negreiros de São Tomé combinados com traficantes instalados na costa e a intermediação de alguns missionários, incrementavam de forma crescente o comércio de escravos.
A condição de escravo já era conhecida no Kongo muito antes da chegada dos portugueses, embora sob a forma de uma certa servidão, a maioria das vezes temporária, em resultado da punição de crimes, por pagamento de dívidas ou pela captura de inimigos no decorrer de actos bélicos. Mas o que acontece é que Afonso não demorou a percebesse as vantagens que poderia auferir com a venda de escravos aos europeus, que deles necessitavam para as pujantes colónias do Novo Mundo e, entre os próprios clérigos, alguns revelaram-se destituídos de grande vocação missionária, muito mais talhados para preencher o papel de activos comerciantes de gente.
Para manter um fornecimento regular, Afonso I fez guerra às nações vizinhas, sobretudo ao reino do N'Dongo, capturando grande número de prisioneiros que eram posteriormente vendidos para a costa. Estas guerras continuaram mesmo depois do seu reinado e em 1556, as forças do filho de Afonso, o manikongo Diogo, foram derrotadas tendo este perdido a vida durante os combates. O seu sucessor governou um reino tão enfraquecido que os jaga conseguiram derrotá-lo deixando o Kongo em escombros, no meio dos quais os sucessores de Afonso presidiam ao arremedo de uma corte europeia.
Da situação caótica vivida nos fins do século XVII, chegam-nos ecos através do relato de um padre capuchinho, Lourent de Lucques, que em 1701 escrevia:
“ As notícias provenientes do Congo são cada vez piores e as inimizades entre as casas reais estão a dividir o país cada vez mais. De momento contam-se quatro reis no Congo. Há também dois grão-duques em Mamba; três grão-duques em Ovampo; dois grão-duques de Batta e quatro marqueses em Enhcus. A autoridade de cada um deles é cada vez mais fraca e estão a destruir-se mutuamente, com grandes guerras entre eles. Todos querem ser chefes. Lançam ataques contra o território dos outros de modo a roubar e a vender os seus prisioneiros .”
São Salvador de Congo entra em ruína e a população começava a abandonar a capital. No entanto, no meio de tanta adversidade ocorreu um inesperado e insólito facto.
Como sempre acontece, é o povo quem mais se ressente com as consequências do declínio e anseia por dias melhores, pelos tempos de Afonso, filho de João. Muitos estão convencidos que um renascimento da fé cristã faria voltar os dias felizes do tempo da chegada dos primeiros portugueses, resultando daí um rápido alastrar de um certo fanatismo religioso, com o aparecimento de profetizas e profetas que anunciam visões e revelações, misturando religião, crenças e política. Uma mulher tinha visto a Virgem Maria, que lhe comunicara a sua irritação pelo que vinha acontecendo no Kongo, um jovem proclamava que Deus puniria o povo se a cidade de S. Salvador não fosse reconstruída rapidamente.
Uma mulher chamada Ma-Futa, chegou mesmo a declarar que possuía a cabeça de Cristo, desfigurada pela perversidade dos homens – concluiu-se que não passava de uma pedra do rio Ambriz. De outra vez, Ma-Futa teve uma visão da Virgem Maria e soube das catástrofes e desastres que ocorreriam se o manikongo não recuperasse a cidade. A rainha convenceu-se dos poderes de cura e adivinhação de Ma-Futa e espalhou-se o boato de que esta era uma santa. Quando os caridosos missionários da fé a quiseram levar a julgamento por bruxaria, o manikongo protegeu-a, impondo a sua autoridade.
Todos estes acontecimentos conduziram a um novo fervor religioso que havia de empolgar todo o Kongo e ao surgimento de uma mulher que tentaria o renascimento nacional, através da sua própria interpretação da fé cristã.
Kimpa Vita, seu primeiro nome, surge e vive neste contexto. De origem nobre, da aristocracia Bacongo, sacerdotisa do culto de Marinda, habituada aos meandros do poder e às intrigas da elite governante, deve ter tido consciência do malogro desta classe e, ao mesmo tempo, observado com perspicácia a forma como alguém, como Ma-Futa, influía eficazmente nos espíritos e nos acontecimentos. E tomou a decisão de assim fazer, na qualidade de D. Beatriz.
Como quis revelar mais tarde, começou tudo durante um longo período de doença em que esteve às portas da morte e lhe apareceu S. António. Não havia nada de muito extraordinário na escolha do santo – era um santo português, muito reverenciado por missionários e colonos nos reinos do Kongo e N'Dongo – a diferença residia no facto de não se tratar de um santo “ branco ”.
O Santo António que apareceu a D. Beatriz assumiu o aspecto de um dos seus irmãos, aglutinando numa mesma pessoa a religião estrangeira e uma personalidade africana. Estava mesmo à medida do que D. Beatriz desejava para a restauração de um reino como romanticamente se acreditava que fora o de Afonso I.
(Estatueta de S. António, em pau-preto, atribuída aos primeiros anos de cristianismo no Congo)
À semelhança de muitos místicos em todo o mundo e em todas as épocas, renunciou à coisas materiais. Chegou mesmo a imitar a morte de Cristo – os seus seguidores convenceram-se de que morrera numa sexta-feira, subindo aos céus para advogar a causa do seu povo e ressuscitou no sábado seguinte. A sua mensagem política era simples: o Kongo devia ressurgir, renascer e o aparato religioso de que se rodeou ia de acordo ao imaginário da sua gente. Foi fácil ser aceite
de imediato por quase todos que ouviam a sua voz.
( Ruínas da Sé do Congo , in “O Occidente” 5º ano, vol. V. n.º 118, de 01/04/1882, p. 77 – desenho de Manuel Monterroso e gravura de Caetano Alberto)
Kimpa Vita acreditava, com toda a força da alma, que S. Salvador devia regressar aos tempos gloriosos em que fora “a cidade dos sinos” e estabeleceu-se na capital por volta do ano de 1704, reconhecida como guia religiosa e dirigente política. O capuchinho Bernardo Gallo desenhou o seu retrato vestida de verde e de cabeça coroada, e Laurent de Lucques conta-nos dela: “ Esta jovem tem cerca de vinte e dois anos de idade. É elegante e possui feições correctas. Externamente dá a sensação de ser muito devota. Fala com gravidade e parece pesar cada palavra. Prevê o futuro e disse, entre outras coisas, que o Dia do Julgamento está muito próximo .”
Esta mulher era tão reverenciada em S. Salvador que os homens de alta estirpe colocavam as suas capas como toalha de mesa para que ela se servisse. Para onde quer que se deslocasse, era precedida por um grupo de nobres que limpava o caminho à sua frente.
O maior sonho de D. Beatriz era criar uma igreja africana com as histórias tradicionais da Bíblia e na qual o Kongo fosse a Terra Santa. Cristo teria nascido em S. Salvador e os fundadores do cristianismo eram africanos. Não copiava os europeus como o manikongo e os nobres tinham feito, considerando mais importante insistir na diferença dos povos bantu. Os brancos teriam sido feitos originariamente de uma pedra macia, enquanto os pretos provinham na sua essência, de uma fogueira.
Em menos de dois anos, esta jovem criou uma igreja com o seu próprio dogma. O âmago da sua crença poderia hoje considerar-se um conceito muito avançado de “negritude” ou “consciência negra”, ou seja, um reconhecimento do valor da experiência africana. Talvez por isso voltou ao traje e aos costumes tradicional.
A mensagem cristã fora adaptada no Kongo, no início das Descobertas, para dar ao manikongo o poder da Europa, o que manifestamente não chegou a acontecer. D. Beatriz retomou a mesma mensagem, mas transformando-a de modo a devolver o poder ao povo. Anunciou a chegada de um novo período áureo para os crentes sinceros, logo após a reconstrução de S. Salvador, o regresso da população e o ambiente propício à satisfação de todas as necessidades.
A alteração ou adaptação mais significativa do cristianismo foi a autorização da poligamia, o que por oposição a este sistema, levou ao isolamento dos missionários europeus em relação à cultura bakongo. Dona Beatriz, não era no entanto uma libertina, pois todas as outras regras eram rigorosamente observadas, procurando disciplinar o povo e fortalecer o país. Escusado será sublinhar que os missionários portugueses se opunham ferozmente a ela, ainda que a considerassem antoniana, em consequência das suas visões do santo.
Inicialmente pouco ou nada poderam fazer porque, como nos diz Bernardo de Gallo, ela era extraordinariamente bem sucedida: “ Aconteceu que S. Salvador foi rapidamente povoado, porque alguns para lá se encaminharam para adorar a pretensa santa, outros para ver a reconstrução da cidade, muitos para visitar amigos, alguns atraídos pelo desejo de recuperar a saúde através de um milagre e outros ainda motivados por ambições políticas. Desta forma, o falso santo tornou-se o restaurador, o dirigente e senhor do Congo .”
Aos olhos dos seus seguidores, D. Beatriz tinha adquirido um tal poder divino, que quando ela passava até as árvores derrubadas se voltavam a erguer.
Não obstante tudo isto, foi ela própria derrubada. Os europeus estavam decididos a eliminá-la e, quando chegou a oportunidade, provocaram-lhe uma queda foi vertiginosa.
A autoridade do manikongo, à época Pedro IV, era diminuta. Um grupo importante de elementos da hierarquia tinha mesmo nomeado um outro manikongo que se lhe opunha e Pedro IV dependia do auxilio dos portugueses para se manter no poder, estando por isso mesmo, a sofrer forte pressão dos missionários para suprimir D. Beatriz e o seu movimento antoniano. Mesmo persuadido pelos capuchinhos de que ela apoiava o seu rival, Pedro só tomou posição contra D. Beatriz quando esta enfraqueceu a sua posição.
Desejosa de repetir uma história cristã de vertente africana, deu á luz um filho e afirmou que continuava virgem. Apesar do terror que impunha, esta história enfraqueceu a fé popular depositada nela. Ainda que com receio da reacção do povo, D. Pedro mandou prende-la poucos meses depois do nascimento do filho, corriam os primeiros meses de 1706, com a ideia inicial de a enviar a julgamento, ao bispo de Angola, na esperança de a fazer escapar no longo trajecto até Luanda. Mas os missionários capuchinhos estavam ansiosos e pretendiam um tratamento público para o caso, obrigando Pedro a julgá-la em conselho real. Como era o costuma cristão da época, foi condenada à morte na fogueira.
Laurent de Lucques descreve-nos assim a sua morte: - “ Dois homens com sinetas na mão dirigiram-se para o meio desta grande multidão e fizeram suar os sinos e imediatamente o povo recuo e, no meio do espaço vazio, apareceu o basciamucano, isto é, o juiz. Envergava da cabeça aos pés, um manto negro e na cabeça tinha um chapéu também negro, de um negro tão horrível que eu não supunha que pudesse existir. Os culpados foram levados à sua presença. A jovem, que levava o filho nos braços dava a sensação de estar cheia de medo e receio. Os acusados ficaram sentados no chão, aguardando a sua sentença de morte.
Compreendemos que tinham decidido queimar a criança juntamente com a mãe. Pareceu-nos uma grande crueldade. Apressei-me a falar com o rei para ver se havia alguma possibilidade de a salvar...
O basciamucano fez um grande discurso. O tema principal foi o elogio do rei. Enumerou os seus títulos e apresentou provas do seu interesse pela justiça. Finalmente pronunciou a sentença contra Dona Beatriz, afirmando que sob o falso nome de Santo António enganara o povo com as suas heresias e falsidades. Consequentemente, o rei, seu senhor, e o conselho real condenavam-na a morrer na fogueira. A mulher fez tudo para se desdizer, mas os seus esforços foram vãos. Isto provocou grande tumulto entre a multidão, pelo que nos vimos impossibilitados de prestar qualquer assistência aos dois condenados. Tudo o que podemos acrescentar é que havia um grande monte de lenha para o qual foram atirados, cobriram-nos com outros pedaços de madeira e queimaram-nos vivos. Não satisfeitos com isto, na manhã seguinte vieram alguns homens que queimaram os ossos restantes e reduziram tudo a cinza .”
A morte de D. Beatriz foi uma vitória parcial que, ao contrário de terminar com a “heresia”, deu início a uma nova fase do antonionismo. Os crentes asseguravam que no preciso lugar onde fora queimada apareceram dois profundos poços, cada um deles com uma brilhante estrela no interior. As relíquias encontradas no meio da cinza, no local do sacrifício, transformaram-se em objecto de grande reverência.
De forma impossível de prever, o objectivo de fortalecer o seu país sob a direcção de um dirigente poderoso, que tinha motivado Dona Beatriz desde o início do movimento, veio a verificar-se. Dois anos depois da sua morte, D. Pedro IV viu-se na necessidade de organizar um exército para combater os antonionistas. Ironicamente, este facto trouxe-lhe novas forças e prestígio, o que lhe permitiu ver-se livre dos seus inimigos e unificar o país. Não há, no entanto e ao contrário do que se passou com a rainha Nzinga, provas de que a fama de D. Beatriz tenha servido de influência libertadora.
Fonte:http://www.carlosduarte.ecn.br